Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a teoria da aparência – que leva ao reconhecimento de efeitos jurídicos em uma situação que apenas parece real – pode ser aplicada em casos muito diversos: de relações de consumo a comunicações processuais, da solidariedade na responsabilidade civil à autorização para o ingresso da polícia em imóveis.
A doutrina conceitua a aparência de direito como "uma situação de fato que manifesta como verdadeira uma situação jurídica não verdadeira, e que, por causa do erro escusável de quem, de boa-fé, tomou o fenômeno real como manifestação de uma situação jurídica verdadeira, cria um direito subjetivo novo, mesmo à custa da própria realidade" (Álvaro Malheiros, citado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca no RMS\r\n57.740).
No julgamento do REsp 1.637.611, a ministra Nancy Andrighi também recorreu à doutrina para explicar que a teoria da aparência se baseia na proteção do terceiro, pois a confiança legítima desse terceiro, agindo de boa-fé, é que faz surgirem consequências jurídicas em situações às vezes inexistentes ou inválidas.
Citação
A Corte Especial do STJ, ao julgar o EREsp 864.947, reafirmou a jurisprudência sobre o tema e aplicou a teoria da aparência para aceitar como válida a citação de uma entidade recebida por quem, segundo o estatuto, não detinha poderes para representá-la judicialmente.
A ação de exibição de documentos foi ajuizada contra uma associação, e, na petição inicial, o autor apontou a diretora-geral como representante legal da entidade. Procurada pelo oficial de Justiça, a diretora, mesmo não sendo a pessoa indicada pelo estatuto para falar judicialmente em nome da instituição, recebeu a citação sem nenhuma ressalva.
Para a Terceira Turma do STJ, que considerou não atendida a finalidade da comunicação processual, o autor da ação conhecia a estrutura administrativa da associação – da qual era conselheiro –, e a ele cabia providenciar a citação correta do representante judicial.
No julgamento dos embargos de divergência contra a decisão da Terceira Turma, a relatora na Corte Especial, ministra Laurita Vaz, afirmou que, diante do comportamento da diretora-geral, o ato de citação deveria ser considerado válido, sob pena de, consagrando formalismo exagerado, levantar-se "inaceitável entrave ao andamento do processo".
Em outro julgamento envolvendo citação, o ministro Luis Felipe Salomão, relator do AREsp 1.616.424, destacou que a jurisprudência do tribunal, em atenção à teoria da aparência, considera válida a citação da pessoa jurídica feita, em sua sede ou filial, a uma pessoa que não nega ter poderes para recebê-la.
O ministro Herman Benjamin acrescentou que o STJ tem adotado a teoria da aparência para aceitar as citações ou intimações feitas na pessoa de quem, sem nenhuma reserva, se identifica como representante da empresa, mesmo que desprovido de poderes expressos de representação (AgInt no REsp 1.705.939).
Por outro lado, no julgamento do REsp 1.840.466, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, decidiu pela não aplicação da teoria da aparência em caso de citação de pessoa física feita por carta enviada à empresa da qual o citando era sócio administrador, e que foi recebida por terceiro. A citação de pessoa física pelo correio – explicou o magistrado – exige a entrega diretamente ao citando, cuja assinatura deverá constar do aviso de recebimento.
"A possibilidade da carta de citação ser recebida por terceira pessoa somente ocorre quando o citando for pessoa jurídica, nos termos do disposto no parágrafo 2º do artigo 248 do Código de Processo Civil de 2015, ou nos casos em que, nos condomínios edilícios ou loteamentos com controle de acesso, a entrega do mandado for feita a funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência, conforme estabelece o parágrafo 4º do referido dispositivo legal, hipóteses, contudo, que não se subsumem ao presente caso", esclareceu.
Marca mundial
No julgamento do REsp 1.705.939, o ministro Herman Benjamin afirmou que, se as empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder pelas deficiências dos produtos que anunciam e vendem. Segundo ele, é "desarrazoado pretender que o consumidor faça distinção entre Sony Brasil Ltda. e Sony America Inc. Para qualquer adquirente, o produto é simplesmente Sony, é oferecido como Sony e comprado como Sony".
Com esse entendimento, a Segunda Turma reconheceu a responsabilidade solidária da Sony Brasil por vício de produto com essa marca – importado, mas comprado em território nacional –, "obrigação genérica que inclui a de prestar assistência técnica".
À luz do sistema de proteção do consumidor – acrescentou o ministro –, a teoria da aparência e a teoria da confiança, "duas faces da mesma moeda", protegem a segurança jurídica e a boa-fé objetiva dos sujeitos vulneráveis e dos contratantes em geral, atribuindo "força negocial vinculante à marca mundial em detrimento de ficções contratuais, contábeis ou tributárias que contrariam a realidade dos fatos tal qual se apresentam nas transações de consumo".
Fornecedor aparente
Ao interpretar o artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) durante o julgamento do REsp 1.580.432, a Quarta Turma decidiu que se enquadra como fornecedor aparente a empresa que legitimamente se utiliza de marca de renome mundial para comercializar seus produtos, mesmo não sendo a sua fabricante.
O colegiado entendeu que a empresa paulista Semp Toshiba Informática Ltda., na qualidade de fornecedora aparente, teria de responder por defeito em notebook fabricado pela Toshiba International, por ter se utilizado da marca mundialmente conhecida.
Para o relator, ministro Marco Buzzi, é pacífico no STJ o entendimento de que, à luz da teoria da aparência, há responsabilidade solidária na cadeia de fornecimento, como preceitua o CDC, sendo possível a responsabilização solidária do fornecedor aparente, beneficiário da marca de alcance global, em nome da teoria do risco da atividade.
O ministro observou que a adoção da teoria da aparência pela legislação consumerista levou à conclusão de que o conceito legal do artigo 3º do CDC abrange também a figura do fornecedor aparente, que deve assumir a posição de real fabricante do produto perante o mercado consumidor.
"O produto defeituoso adquirido pelo autor, ora recorrido, ostenta a mesma marca da empresa recorrente, por meio de sua razão social, e essa, apesar de não ser a fabricante direta do produto, beneficia-se do nome, da confiança e da propaganda Toshiba com o intuito de melhorar seu desempenho no mercado consumidor", frisou.
Fraude
Em 2016, a Terceira Turma rejeitou recurso em que a Hyundai Caoa do Brasil pretendia excluir sua responsabilidade por fraude ocorrida na venda de veículo dentro de uma de suas lojas (REsp 1.637.611).
Um empresário negociou a compra de veículo novo com um dos prepostos da loja. Posteriormente, descobriu que foi vítima de fraude, já que o carro, vendido por R$ 128 mil, não foi entregue no prazo combinado, e, mesmo após registrar boletim de ocorrência, ele não recebeu o veículo, nem o dinheiro de volta.
Ao rejeitar o recurso da empresa, a relatora do caso no STJ, ministra Nancy Andrighi, destacou trechos do acórdão recorrido em que há reconhecimento expresso da fraude, o que inviabiliza os argumentos apresentados pela Hyundai de culpa exclusiva do comprador – que teria emitido o cheque em nome de um particular.
"A atuação do estelionatário contou com auxílio de funcionários da recorrente, pois houve a emissão de nota fiscal em nome do recorrido. Não havia, portanto, qualquer indício para que o recorrido desconfiasse que aquele não fosse um negócio jurídico legalmente válido", disse a ministra.
A relatora aplicou ao processo a teoria da aparência, que, segundo ela, se baseia nos conceitos de boa-fé e confiança.
DPVAT
Em outro julgamento de 2016, a Terceira Turma reconheceu como válido o pagamento de indenização do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT) aos pais – e não ao filho – da vítima falecida. Apresentando-se como únicos herdeiros, os pais entregaram os documentos exigidos pela Lei 6.194/1974 para receber o pagamento – entre eles, a certidão de óbito, a qual afirmava que o falecido era solteiro e não tinha filhos (REsp 1.601.533).
Para o relator, ministro João Otávio de Noronha, pela aplicação da teoria da aparência, é válido o pagamento realizado de boa-fé a credor putativo, desde que o erro seja escusável, por acreditar a parte estar tratando com quem deveria receber o pagamento em questão.
O mesmo entendimento foi dado pela Terceira Turma em 2017, no julgamento do REsp 1.443.349, quando o colegiado negou provimento ao recurso especial interposto pela filha de um segurado, que pleiteava indenização do DPVAT. A recorrente alegou que foi excluída do pagamento da indenização, feito anteriormente a seus avós paternos, os quais, após a morte do seu pai, solicitaram o benefício sem declarar a existência dela.
Segundo a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, a seguradora agiu em conformidade com a legislação, na medida em que confiou na boa-fé dos avós, que fizeram a devida apresentação de documentos e de declaração assinada por duas testemunhas de que o falecido não tinha filhos, o que deu a aparência de legalidade ao ato.
"Aplica-se à hipótese dos autos a teoria da aparência, cuja manifestação pode ser exemplificada pelo disposto no artigo 309 do Código Civil de 2002, o qual afirma que o pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda que provado depois que não era credor", afirmou.
Cooperativas de saúde
A jurisprudência do STJ considera que as cooperativas integrantes do Complexo Unimed do Brasil, embora sejam independentes entre si, comunicando-se por um regime de intercâmbio – o que permite o atendimento de conveniados de uma unidade específica em outras localidades –, estão interligadas e se apresentam ao consumidor como uma única marca de abrangência nacional, o que faz existir a solidariedade entre elas.
Isso porque o tribunal reconhece que a aparência de integração da rede nacional Unimed, composta de cooperativas identificadas pelo mesmo nome, é um elemento central da decisão de contratação do plano de saúde pelo consumidor.
Aplicando esse entendimento, no julgamento do AREsp 1.545.603, relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, a Terceira Turma manteve decisão que determinou à Central Nacional Unimed (cooperativa central) a obrigação de pagar o tratamento de um cliente que precisou mudar de plano, mas não encontrou na rede credenciada da nova operadora, destinatária da portabilidade extraordinária, um hospital equivalente àquele no qual vinha fazendo o tratamento de doença grave.
Em outro caso envolvendo o mesmo sistema de cooperativas (REsp 1.665.698), a Terceira Turma negou provimento a recurso em que a Unimed Fortaleza alegava ser parte ilegítima para figurar no polo passivo de ação movida por cliente de plano de saúde da Unimed Belém. Mesmo com plano de cobertura nacional, a consumidora teve pedido de exame negado em Fortaleza.
O relator, ministro Villas Bôas Cueva, afirmou que, na publicidade feita pela Unimed em seu site, é transmitida ao consumidor a imagem de que o Sistema Unimed garante o atendimento à saúde em todo o território nacional, haja vista a integração existente entre as cooperativas.
"Deve haver responsabilidade solidária entre as cooperativas de trabalho médico que integram a mesma rede de intercâmbio, ainda que possuam personalidades jurídicas e bases geográficas distintas, sobretudo para aquelas que compuseram a cadeia de fornecimento de serviços que foram mal prestados (teoria da aparência)", frisou o ministro.
Atropelamento
Com base no princípio da proteção aos terceiros de boa-fé e na necessidade de imprimir segurança às relações jurídicas, a Quarta Turma decidiu (REsp 1.358.513) que uma empresa engarrafadora de gás de cozinha e uma distribuidora (revendedora exclusiva da primeira) eram solidariamente responsáveis pelo atropelamento de uma criança, ocorrido durante a entrega do produto.
O relator, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que a teoria do risco ganhou destaque no CDC, o qual ampliou o campo de incidência da responsabilidade, que passou a alcançar não apenas o fornecedor diretamente ligado ao evento danoso, mas toda a cadeia produtiva envolvida na atividade de risco.
Ao afirmar ser incontestável a responsabilidade da distribuidora de gás pelo dano causado por seu empregado, o ministro observou que o CDC estabelece expressamente, no artigo 34, que o fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.
Segundo o magistrado, o CDC "estabelece a existência de responsabilidade solidária de quaisquer dos integrantes da cadeia de fornecimento que venham a dela se beneficiar, pelo descumprimento dos deveres de boa-fé, transparência, informação e confiança, independentemente, inclusive, de vínculo trabalhista ou de subordinação".
Essa regra, esclareceu o relator, é a codificação da teoria da aparência, em razão de o consumidor identificar o serviço prestado pelo próprio produto. Para ele, o caso dos autos é de incidência dessa teoria, pois não interessa ao consumidor se é a empresa A ou B que exerce a atividade de entrega do botijão de gás em sua residência, importando mais o fato de o gás ser "produzido" pela empresa engarrafadora, que o coloca no mercado.
Vício em negociação
Para o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, é válida a alienação de imóvel com restrição de venda efetivada por meio de pessoa com procuração, quando reconhecida a boa-fé dos terceiros adquirentes (REsp 1.698.175).
Segundo o relator, o tribunal local, a partir do exame dos elementos de prova e da interpretação das cláusulas contratuais, reconheceu a boa-fé dos compradores e considerou válido o negócio celebrado. O magistrado disse ainda que, não sendo possível a identificação, pelo adquirente, de qualquer pendência sobre o imóvel, há de prevalecer a teoria da aparência.
"A jurisprudência do STJ é no sentido de ser possível a aplicação da teoria da aparência para afastar suposto vício em negociação realizada por pessoa que se apresenta como habilitada para tanto, desde que o terceiro tenha firmado o ato de boa-fé", declarou.
Busca e apreensão
No julgamento do RMS 57.740, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, observou que, embora a teoria da aparência tenha encontrado maior amplitude de aplicação no direito civil e no direito processual civil (particularmente em questões relativas ao consumidor), nada impede sua aplicação também na área penal.
Com esse entendimento, o ministro considerou válida a autorização de ingresso da polícia para cumprir mandado de busca e apreensão em uma empresa, dada por pessoa que já não fazia parte do quadro social da pessoa jurídica.
No caso analisado, a pessoa investigada informou que a sede da empresa se encontrava em local diverso do indicado e conduziu a polícia até lá, abrindo a porta com sua chave e fornecendo autorização por escrito para a busca.
"É de se reconhecer como válida, com base na teoria da aparência, a autorização expressa de realização de busca e apreensão em sede de empresa investigada, dada por pessoa que, embora tenha deixado de ser sócia formal da empresa desde 2013, continuou assinando documentação para os supostos certames fraudulentos", explicou o magistrado.
Facebook
Em outro julgamento de direito penal, em junho de 2020, a Terceira Seção – com base na teoria da aparência – decidiu que o Facebook Brasil pode responder a intimações e citações judiciais dirigidas às empresas Facebook Inc. e WhatsApp Inc. – a qual não conta com representante no Brasil e é subsidiária do Facebook (REsp 1.853.580).
O caso envolveu determinação judicial para que o Facebook Brasil interceptasse as conversas, pelo aplicativo WhatsApp, de investigados em uma operação da Polícia Federal sobre supostos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Segundo o relator, ministro Nefi Cordeiro (aposentado), a pessoa jurídica que não possui sede no Brasil pode ser intimada e até mesmo citada, no país, na pessoa de seu representante, de acordo com previsão expressa do artigo 75, X, do Código de Processo Civil.
"Ainda nesse ponto da legitimidade, apenas como reforço argumentativo, vale trazer a lume a teoria da aparência. Esta teoria, lida em conjunto com o novo CPC, demonstra, claramente, a possibilidade de o Facebook Brasil responder a intimações e citações judiciais do Facebook Inc. (teoria da aparência) e também do WhatsApp Inc. – este último por não contar com outro representante no Brasil e ser uma subsidiária integral do Facebook Inc.", concluiu.