Autora: Natália Cordeiro Barbosa Dijigow
Data de produção: 15/1/2025
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito Administrativo brasileiro passou a ter inúmeros aspectos, características e parâmetros traçados, organizados e disciplinados pela Lei Maior, ocorrendo o que se chamou de “constitucionalização do Direito Administrativo”.
Após um longo período ditatorial, a Carta Magna passou a ser o centro do ordenamento jurídico pátrio, constituindo fundamento de validade para todas as normas do país, irradiando seus preceitos, concepções, valores, princípios e regras a todos os ramos do Direito, entre os quais, o Direito Administrativo.
Com a Constituição de 1988, os direitos fundamentais tornaram-se a medula espinhal do ordenamento, de observância obrigatória não apenas na releitura e na reconstrução de preceitos, institutos e instrumentos do Direito Administrativo, mas principalmente no exercício da função administrativa (“Constituição invasora”).
Além disso, os princípios, outrora utilizados de forma secundária, como vetor integrativo e/ou interpretativo das leis, passaram a ser considerados como normas primárias, ao lado das regras, podendo ser invocados no controle de juridicidade dos atos administrativos (reconhecimento da força normativa dos princípios).
Ademais, no contexto de transição de um Estado Social para um Estado Subsidiário, a Carta de 88 possibilitou ainda a utilização pela Administração Pública de uma série de instrumentos típicos da iniciativa privada em sua atuação, ampliando a autonomia de órgãos e entes públicos com vistas a um controle de resultados, não mais de meios (transição da Administração Pública Burocrática para a Administração Pública Gerencial).
Assim, o objeto da função administrativa é ampliado exponencialmente, tornando-se obrigação do Poder Público a promoção dos direitos e valores constitucionais de proteção aos indivíduos, em sua atuação.
É nesse contexto que parcela da doutrina moderna do Direito Administrativo passa a questionar, gradativamente, o conteúdo normativo do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, no sentido de que a autoridade do Poder Público, consubstanciada em suas prerrogativas decorrentes deste princípio, deve ser relativizada em virtude do fenômeno do constitucionalismo.
Alguns doutrinadores passam a sustentar a inexistência do princípio em abstrato, outros advogam pela sua relativização e há ainda os que defendem a sua efetiva superação.
O professor Rafael Oliveira[1] elenca os argumentos que culminaram nesse movimento da doutrina:
a) a Carta Magna estabelece uma série de direitos individuais a serem protegidos, os quais decorrem do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, não podendo se cogitar da existência de uma prevalência do interesse público genérico, mas sim de um interesse do Estado em tutelar os direitos e garantias fundamentais;
b) a indeterminabilidade abstrativa e objetiva de interesse público contraria a acepção normativa da segurança jurídica protegida pelo ordenamento;
c) hodiernamente a dicotomia entre direito público e direito privado resta superada, havendo uma indissociabilidade entre interesse público e interesse privado (a promoção do interesse público resultaria na promoção do interesse privado – não individual); e
d) há uma incompatibilidade da supremacia do interesse público com postulados normativos da Constituição, notadamente a proporcionalidade e a concordância prática.
Os argumentos parecem mais do que suficientes para se concluir que, de fato, a constitucionalização do Direito Administrativo culminou – e o fez muito bem – na relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
Nesse sentido, a atuação do Poder Público fundamentada de forma abstrata e genérica no “interesse público” é inconstitucional, contrariando o fundamento da dignidade da pessoa humana.
A legalidade, a legitimidade e a juridicidade da atividade e dos atos administrativos pautados na supremacia do interesse público sobre o privado estão condicionadas à motivação clara, transparente e específica e à demonstração de cumprimento das normas jurídicas que regulam a atividade estatal, notadamente aquelas que dizem respeito aos direitos e garantias fundamentais, sob pena de se validar, na prática, uma atuação arbitrária e absolutista do Estado.
A meu ver, a constitucionalização do Direito Administrativo não culminou na superação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado – o qual permanece ancorado no ordenamento jurídico pátrio, sendo indispensável para a atuação do Estado visando a consecução dos interesses da coletividade – mas apenas dignificou o seu conteúdo normativo, moralizando o seu significado e possibilitando que sua aplicação seja mais objetiva, proba, ética, segura e transparente, não podendo o gestor público alicerçar os seus atos, de forma abstrata e genérica, no “interesse público”, sem efetivamente motivá-lo e demonstrá-lo à sociedade, sob risco de se ter uma atuação insondável, obscura, arbitrária e abusiva do Estado.
[1]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 7a Edição. São Paulo: Método, 2019: página 36.
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .
Natália Cordeiro Barbosa Dijigow
Minibio: Procuradora-Chefe da Procuradoria Consultiva e do Contencioso Administrativo do Município de Mauá/SP, advogada, consultora e escritora. Formada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e Especialista em Direito Tributário pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes LFG -Universidade Anhanguera Uniderp.