A Prestação de Serviços Digitais na Atualização do Código Civil

  • Categoria do post:AASP

Autores: Afonso José Simões de Lima e Lucas Naif Caluri

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Data de produção: 18/1/2025

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Com as mudanças prestes a acontecer no Código Civil (CC), o anteprojeto de atualização em tramitação no Congresso Nacional, com a participação do civilista Flávio Tartuce e de um grupo de juristas, busca sincronizar os direitos digitais e a internet, dentre outros tantos relevantes temas.

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No caderno atinente aos contratos, houve a inserção do Capítulo VII-A, destinado à “prestação digital de serviços e do acesso a conteúdos digitais”.  Ambos compõem “um conjunto de prestações de fazer, economicamente relevantes, que permitam ao usuário criar, tratar, armazenar ou ter acesso a dados em formato digital, assim como partilhar, efetivar mudanças ou qualquer outra interação com dados em formato digital e no ambiente virtual” (art. 609-A).

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A  prestação de serviços digitais é caracterizada como uma obrigação de fazer, em que o fornecedor se compromete a realizar ações específicas para os usuários, que podem ser desde a criação de sites, softwares, bancos de dados, aplicativos ou outras plataformas utilizadas em sistemas ou na internet, abrangendo acesso, edição, organização, análise, armazenamento e tratamento de dados, dentre outros. Essas atividades são juridicamente qualificadas como prestação de serviços, sujeitas às regras dos contratos de prestação de serviços (arts. 593 e seguintes do CC), e, em muitos casos, à legislação específica sobre comércio eletrônico e proteção de dados.

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A nova proposta destaca a expressão “economicamente relevantes”, indicando que esses serviços possuem valor monetário atribuído e são objeto de relações comerciais, abrindo margem para a tributação e regulação, como ocorre com serviços de streaming, armazenamento em nuvem e outros. Tais mudanças têm relações intrínsecas com os contratos de adesão, termos de uso e políticas de privacidade, em obediência à legislação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018).

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De outra banda, tais serviços envolvem uma relação de consumo, na qual o usuário (consumidor) é protegido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078/1990).

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O parágrafo único do mesmo artigo 609-A aborda a inclusão de bens imateriais como elementos auxiliares ou acessórios que viabilizam a prestação do serviço digital ou o acesso a conteúdos digitais. Assim, como bens imateriais podemos citar: softwares, algoritmos, bancos de dados, ou mesmo tecnologias de interoperabilidade, que são essenciais para a funcionalidade de muitos serviços digitais.

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Pedagogicamente, a classificação de bens imateriais (incorpóreos) é definida pelo CC (art. 83), indicando serem aqueles suscetíveis de valor econômico, ainda que não sejam tangíveis. Nesse sentido, entendemos que mesmo que não registrados (como patentes ou direitos autorais), esses bens são protegidos pela legislação de propriedade intelectual, incluindo a Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998) e a Lei de Software (Lei nº 9.609/1998). A interoperabilidade pode ser incluída como uma obrigação contratual acessória. Nos casos de intermediação (como em plataformas de buscas, por exemplo), o dispositivo reitera que a presença de bens imateriais não descaracteriza a prestação de serviço. Isso é relevante para diferenciar o contrato de prestação de serviços (obrigação de fazer) de outros contratos, como o de compra e venda (obrigação de dar).

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De redação dúbia, o art. 609-B aponta que “os prestadores de serviços e de conteúdos digitais, em especial os de intermediação e de busca na internet, devem agir conforme a boa-fé, permitindo o armazenamento, de forma duradoura, dos contratos e mantendo a transparência nos negócios e na elaboração das cláusulas contratuais gerais”.

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Algumas perguntas decorrem de tal redação: como se dá o armazenamento de forma duradoura? Com efeito, o texto suscita algumas questões importantes sem, contudo, sinalizar qualquer solução viável: o que significa exatamente “armazenamento de forma duradoura”? Além disso, a redação não esclarece como será fiscalizado o cumprimento desse dever de boa-fé ou quais sanções podem ser aplicadas em caso de descumprimento. Essa vagueza compromete a segurança jurídica.

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Nos parágrafos do mesmo artigo,  a nova legislação aponta que o serviço prestado será considerado viciado, caso o contrato não inclua cláusulas gerais que garantam ao usuário informações claras sobre as características do serviço. Ou seja, o legislador quer enfatizar que nos casos de relação de consumo em que sejam constatados vícios no serviço, aplicam-se, no que for compatível, as disposições relativas aos vícios redibitórios ocultos, sem prejuízo das normas estabelecidas pelo CDC.

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Por sua vez, as novas diretrizes digitais destacam que os prestadores de serviços digitais têm o dever de informar os usuários, por meio de um sistema de suporte, sobre quaisquer propostas de alteração nas cláusulas contratuais gerais. Destacou o novo anteprojeto que são consideradas abusivas e, portanto, nulas, as cláusulas que permitam alterações unilaterais nos contratos ou que estendam efeitos retroativos às cláusulas contratuais, salvo se forem mais vantajosas para os usuários.

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No que tange ao lapso temporal dos contratos de Prestação de Serviços e Acesso a Conteúdos Digitais, estes poderão ser pactuados por prazo determinado, com previsão de renovação, garantindo-se a manutenção da relação contratual pelo período necessário para a justa compensação dos investimentos realizados por ambas as partes. As decisões relativas à suspensão, cessação ou imposição de restrições ao contrato não podem configurar constrangimento discriminatório ou abusivo.

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Ponto de elogio é o destaque dado à segurança. Agora, os prestadores de serviços digitais deverão adotar todas as medidas adequadas e necessárias para garantir o nível de segurança exigido pelo meio digital, com especial atenção à prevenção de fraudes.  Com o novo texto, os prestadores de serviços digitais responderão civilmente por vazamentos de dados pessoais, independentemente de culpa, reconhecendo-se como regra a responsabilidade objetiva.

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A utilização da IA (inteligência artificial) na prestação de serviços digitais deverá ser expressa e claramente informada aos usuários, em conformidade com os princípios da boa-fé, da transparência e da função social do contrato.

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Dito isso, a norma se alinha com o reconhecimento da complexidade dos serviços prestados nesse setor. Serviços de busca, intermediação e fornecimento de conteúdos digitais envolvem tecnologias integradas, algoritmos e inteligência artificial, elementos que não podem ser ignorados na caracterização do serviço.

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Esse novo capítulo da atualização do CC reconhece que a prestação de serviços digitais é uma relação jurídica baseada nas normas gerais de contratos, na legislação tributária e nas normas de proteção ao consumidor. Isso inclui a obrigação da entrega efetiva do serviço contratado e o respeito aos direitos do usuário no ambiente digital. E também reforça a ideia de que a presença de bens imateriais, mesmo como elementos acessórios, não altera a natureza jurídica da prestação de serviços digitais, esperando-se que a atualização proposta pelo anteprojeto possa contribuir para a obtenção de maior clareza interpretativa, refletindo uma compreensão moderna da economia digital.

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Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .

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Afonso José Simões de Lima

Minibio: Bacharel em Direito pela PUC – Campinas. Especializado em Gestão da Qualidade pela UNICAMP. Certificado de Proficiência em inglês pela Universidade de Michigan, EUA. Ex-advogado da Telesp S.A. e Telefônica Brasil S.A.

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Lucas Naif Caluri

Minibio: Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Carlos; Especializado em Processo Civil pela PUC – Campinas; Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba; Doutor em Direito pela Universidade Mackenzie de São Paulo; Professor Universitário.

                         

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