O segundo dia do I Simpósio Internacional pela Equidade Racial: Brasil, Estados Unidos e África do Sul, realizado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi marcado por palestras que analisaram os desafios e avanços na luta pela equidade racial. Autoridades brasileiras e estrangeiras compartilharam experiências sobre o combate ao racismo nos três países e debateram estratégias para o seu enfrentamento no Poder Judiciário.
Os trabalhos da manhã foram abertos pelo presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, que apontou três desafios fundamentais na luta contra a desigualdade racial: o reconhecimento da existência do racismo nos mais diversos níveis da sociedade, o combate à minimização de seus efeitos e o enfrentamento das suas múltiplas faces. "Cabe aos magistrados impedir que a discriminação prospere nos processos", declarou.
Herman Benjamin informou que as apresentações do simpósio serão reunidas em livro, a ser publicado em português e em inglês.
Herança colonial perpetua desigualdades raciais no Sistema de Justiça
Ao presidir o primeiro painel do dia, intitulado "Equidade Racial no Direito Comparado: Brasil, Estados Unidos e África do Sul", a desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) Angela Maria Moraes Salazar destacou o impacto histórico do evento. Segundo ela, o racismo no Brasil tem raízes no período colonial e na exclusão econômica da população negra após a abolição. Para a magistrada, essa herança perpetua desigualdades que ainda hoje estruturam o Sistema de Justiça.
"Se, do ponto de vista formal, as pessoas afrodescendentes conquistaram igualdade de direitos, na prática ainda são discriminadas nos espaços públicos e privados", afirmou.
Institucionalização do racismo e perspectivas futuras
O desembargador Rowan Wilson, presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Nova York, abordou a trajetória da discriminação racial nos Estados Unidos e os esforços empreendidos para alcançar a equidade. Ele comentou que, embora a Declaração de Independência americana defendesse direitos inalienáveis, a realidade dos afrodescendentes continua até hoje marcada por desigualdades.
Wilson mencionou casos históricos de violência e institucionalização do racismo, além de problemas atuais, como a desproporcionalidade racial no sistema carcerário e nas taxas de pobreza. Ele ressaltou iniciativas como os centros de justiça comunitária e os esforços para promover diversidade no Judiciário, mas reconheceu que há um longo caminho pela frente: "Embora ainda tenhamos muitas dificuldades, vislumbramos um futuro brilhante."
Para combater o racismo é preciso reconhecer privilégios
Stevan Arnold Majiedt, ministro da Corte Constitucional da África do Sul, compartilhou a experiência de seu país na superação do apartheid, regime que institucionalizou o racismo até 1994. Ele enfatizou que o primeiro passo para combater o racismo é o reconhecimento de privilégios por parte dos beneficiários desse sistema.
Majiedt explicou como a constituição sul-africana busca corrigir desigualdades históricas, com ações afirmativas e leis rigorosas contra discursos de ódio. "Já demos os primeiros passos. Continuemos andando diligentemente" – disse, citando Nelson Mandela.
Respostas institucionais contundentes
A juíza federal Adriana Alves dos Santos Cruz, secretária-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), analisou a persistência do racismo no Brasil, suas raízes e os desafios para enfrentá-lo no Sistema de Justiça. Ela destacou dados alarmantes, como a alta taxa de homicídios entre jovens negros, e mencionou os dispositivos de racialidade que negam poderes, saberes e subjetividades à população negra.
Adriana citou avanços recentes, como o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial do CNJ, mas reforçou que há muito trabalho pela frente: "Precisamos dar respostas institucionais contundentes. Não nos percamos nas distrações do racismo, que nos tira do caminho que temos de trilhar."
Estratégias eficazes para a equidade racial no Judiciário
O segundo painel da manhã, presidido pelo desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), discutiu estratégias eficazes para promover a equidade racial no Sistema de Justiça.
O magistrado destacou a importância do reconhecimento da desigualdade racial como ponto de partida para que se consiga construir uma sociedade mais justa e fraterna. "Políticas que negaram direitos à população negra precisam ser enfrentadas com ações concretas e comprometimento institucional", disse.
O direito contra o direito
Thula Pires, coordenadora do programa de pós-graduação em direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), apresentou estratégias para a promoção da equidade racial, com destaque para a litigância estratégica, que utiliza o direito como ferramenta de enfrentamento do próprio racismo institucionalizado. Citando figuras históricas como Luiz Gama e Esperança Garcia, ela salientou a longa tradição de luta pela justiça racial no país.
A professora explicou que a formação jurídica no Brasil reflete uma estrutura colonial excludente. Ela também defendeu a ampliação do repertório doutrinário e a inclusão de perspectivas raciais na formação de magistrados, além do investimento em dados e diagnósticos para subsidiar políticas públicas.
"O direito não foi construído de forma a proteger pessoas negras", afirmou.
Psicologia social e justiça racial
O professor da escola de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP) Adilson Moreira abordou a relação entre psicologia social e equidade racial, propondo o letramento racial como uma forma de reconstruir a democracia brasileira. Ele discutiu o modo como estereótipos e preconceitos raciais afetam toda a cadeia do Sistema de Justiça, desde a abordagem policial até a aplicação de sentenças.
"O racismo reproduz estereótipos que influenciam a percepção de juízes sobre a periculosidade de indivíduos negros", apontou.
Entre suas propostas, Moreira destacou a obrigatoriedade do ensino de disciplinas antidiscriminatórias nos cursos de graduação em direito e a necessidade de conscientizar os operadores do Sistema de Justiça sobre os vieses inconscientes.
Senso de urgência e radicalidade
O diretor de Litigância e Incidência na Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, enfatizou a necessidade de avançar na aplicação prática das normas legais que garantem direitos aos negros. Ele alertou para a persistência de violações sistemáticas, apesar de avanços no plano normativo.
Sampaio também criticou o modelo de ingresso na magistratura, que, por vezes, dificulta o preenchimento das vagas e reforça desigualdades. O especialista defendeu a conscientização na aplicação da legislação penal para conter o abuso do poder punitivo, promovendo uma transformação social baseada na dignidade.
"Para alcançar a equidade racial, é preciso ter radicalidade nas ações e senso de urgência", avaliou.