Do direito de acesso à rede de água potável, saneamento básico e energia elétrica para os que habitam áreas de ocupação irregular

  • Categoria do post:AASP

Autor: Natália Cordeiro Barbosa Dijigow

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Data de produção: 27/2/2025

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O acesso à rede de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica trata-se de um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade.

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Sem este acesso, o direito à saúde, ao bem-estar e à própria vida, em si, restariam prejudicados, pois nenhum ser humano pode viver com dignidade sem água potável, sem condições de higiene e sem energia.

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O direito de acesso à rede pública de fornecimento desses serviços fulcra-se no fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, do qual decorre uma série de direitos e garantias fundamentais, entre os quais, o direito à vida, à igualdade, à segurança e à saúde.

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Por outro lado, o cumprimento de normas urbanísticas e ambientais é indispensável à consecução dos interesses públicos primários tutelados pelo Estado. É nessa toada que parcelamentos irregulares e clandestinos devem ser prevenidos e combatidos pelo Poder Público, notadamente por contribuírem para o enfraquecimento da economia local, para a desvalorização de loteamentos legítimos, bem como para a ocorrência de danos urbanísticos e ambientais, muitas vezes irreparáveis, de consequências inestimáveis e nefastas à sociedade.

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O problema surge quando moradores de áreas de ocupação irregular buscam acesso à rede pública de fornecimento de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica, os quais muitas vezes lhes são negados pelas concessionárias, por estarem os imóveis localizados em lotes parcelados, ocupados e habitados furtivamente.

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Se de um lado tem-se o direito humano fundamental de acesso à rede desses serviços por essas pessoas, de outro tem-se o dever do Estado de zelar pelo cumprimento de normas públicas urbanísticas e ambientais e de combater parcelamentos irregulares, os quais quase sempre culminam em danosas consequências à coletividade.

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Sobre o tema, basicamente há duas linhas de entendimento: uma que defende a prevalência do direito de acesso dessas pessoas à rede de fornecimento desses serviços, ainda que o imóvel envolvido esteja localizado em região de parcelamento irregular, e outra que entende pela primazia da proteção às normas urbanísticas e ambientais sobre o direito individual desses moradores, concluindo que a disponibilização desses serviços em áreas de ocupação irregular, acabaria por chancelar e estimular a clandestinidade e mais invasões.

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Para estes últimos, em que pese a importância do fundamento da dignidade da pessoa humana, do qual decorre o direito de acesso à rede pública de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica, seu fornecimento para imóveis localizados em áreas ocupadas de modo furtivo e clandestino, mostra-se, na essência, como uma medida de estímulo a ocupações irregulares. Em outras palavras, impor aos concessionários a obrigação de fornecimento desses serviços públicos, em loteamentos clandestinos, seria o mesmo que chancelar tais empreendimentos em desrespeito à lei.

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Nesse sentido, para essa linha de entendimento, conquanto não se olvide da essencialidade dos serviços em apreço, constituem normas de ordem pública e voltadas aos interesses coletivos aquelas que regem o direito urbanístico e a defesa do meio ambiente, as quais, nesse caso, devem se sobrepor aos interesses meramente individuais. Logo, muito embora a universalização dos serviços de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica seja uma meta legítima do Poder Público, não pode se sobrepor aos valores constitucionalmente protegidos e correspondentes ao adequado ordenamento territorial urbano e ao direito ao meio ambiente equilibrado.

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Nesse sentido, alguns julgados podem ser mencionados:

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AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO LIMINAR. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. Pretensão de fornecimento de energia elétrica a imóveis situados em loteamento clandestino. Inadmissibilidade. Embora a concessão de energia elétrica possa ser considerada serviço público essencial, legítima a recusa da concessionária em não promover a instalação da eletricidade no local, sob pena de se incentivar a ocupação clandestina. Não evidenciado que o local admita a instalação e fornecimento de energia elétrica de forma segura, tampouco que os terrenos não estejam em área de preservação ambiental. Recurso não provido (Apelação Cível nº 1001091-21.2017.8.26.0582; Relator (a): Núncio Theopilo Neto, 27ª Câmara de Direito Privado; j. em 14/06/2022).

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Agravo de Instrumento. Obrigação de fazer. Fornecimento de energia elétrica em lote irregular. Impossibilidade. O fato de haver outras propriedades no mesmo loteamento e que se irmanam na mesma irregularidade administrativa perante o Poder Público, para as quais foi oferecido o serviço, não legitima o direito do autor. Irregularidade que não pode, jamais, servir de fundamento para outra irregularidade, sob pena de distorção do princípio da isonomia. Não cabe ao Poder Judiciário ordenar a prestação de serviços públicos, determinando fornecimento de energia elétrica a um particular em situação irregular, pois assim agindo, estar-se-ia estimulando atos ilícitos de invasão de imóveis. Decisão mantida. Recurso DESPROVIDO (Agravo de Instrumento 2082921-84.2020.8.26.0000; Relator (a): L. G. Costa Wagner; 34ª Câmara de Direito Privado; j. em 18/12/2020).

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APELAÇÃO. Ação cominatória para emissão de alvará destinado à ligação de energia elétrica. Município da Estância Turística de Tremembé. Urbanização informal no local conhecido por “Pesqueiro do Coca”. Prédio residencial em construção, ainda não habitado, sem licença para edificar, em loteamento ilegal e clandestino, situado em área rural, classificada, no Plano Diretor Municipal, em Zona de Recuperação Ambiental. Má-fé do adquirente do lote e construtor do prédio. Embargos oficiais realizados. Perspectiva de regularização ausente, anotada, inclusive, a falta de qualificação do núcleo urbano informal como consolidado. Inexistência, neste quadro, de direito subjetivo do possuidor de lote e construtor do prédio à autorização, licença, alvará ou algum ato formal da municipalidade (ou judicial), direcionado à implantar algum tipo de infraestrutura urbana ou ao fornecimento de energia elétrica no prédio em questão, sublinhada a ausência de ocupação (ou habitação) do imóvel – Inocorrência de afronta ao art. 10, I, da Lei nº 7.783/89, ou violação aos princípios da dignidade da vida humana, por recusa de prestação de serviço público essencial. Sentença de improcedência confirmada RECURSO DESPROVIDO (Apelação Cível nº 1000531-83.2018.8.26.0634; Relator (a): Vicente de Abreu Amadei; 1ª Câmara de Direito Público; j. em 14/08/2019).

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Contudo, respeitado o referido entendimento, a mim, o acesso à rede pública de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica, trata-se de um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade, de toda e qualquer pessoa, não podendo ser suprimido nem mesmo para aqueles que habitam áreas ocupadas de forma irregular.

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É inquestionável e inafastável o direito de toda e qualquer pessoa de usufruir do fornecimento desses serviços, públicos e absolutamente essenciais, sem os quais torna-se impossível a própria vida, em si.

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É impensável a existência de uma vida humana íntegra, digna e sadia sem acesso à rede de água potável, de saneamento básico e de energia elétrica.

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A fim de prevenir e de combater ocupações irregulares, o Poder Público dispõe de uma série de medidas, ferramentas e instrumentos jurídicos, de modo que impedir o acesso de serviços públicos essenciais a pessoas que habitam essas áreas, não se mostra nem um pouco razoável; ao contrário, agrava, ainda mais, as mazelas de um Estado que, agindo dessa forma, contribui para a marginalização desses moradores, acentuando desigualdades e injustiças sociais.

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Nesse sentido, não pode o Poder Público valer-se de meio indireto para sancionar moradores de um loteamento irregular, sob o argumento de se tratar de ocupação clandestina, especialmente porque, de alguma forma, concorreu para a situação de furtividade, não podendo se eximir de sua responsabilidade em fiscalizar o parcelamento do solo.

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Não é razoável que, a pretexto de fazer cumprir o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, se imponha a essas pessoas terem de morar em local sem o mínimo necessário à sua subsistência e de suas famílias.

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Sobre o tema, o professor Daniel Sarmento leciona que:

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(…) diante de conflitos entre direitos fundamentais e interesses públicos de estatura constitucional, pode-se falar numa precedência “prima facie” dos primeiros. Esta precedência implica na atribuição de um peso inicial superior a estes direitos no processo ponderativo, o que significa reconhecer que há um ônus argumentativo maior para que interesses públicos possam eventualmente sobrepujá-los. Assim, o interesse público pode até prevalecer diante do direito fundamental, após um detido exame calcado sobretudo no princípio da proporcionalidade, mas para isso serão necessárias razões mais fortes do que aquelas que permitiriam a “vitória” do direito fundamental. E tal ideia vincula tanto o legislador que se realizarem ponderações abstratas que negligenciarem esta primazia prima facie dos direitos fundamentais poderá incorrer em inconstitucionalidade como os aplicadores do Direito juízes e administradores quando se depararem com a necessidade de realização de ponderações em concreto.

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Importante que se observe decisões proferidas exatamente nesse sentido:

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APELAÇÃO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. Fornecimento de energia elétrica. Loteamento irregular. Sentença de improcedência. Apelo da parte autora. Fornecimento de energia elétrica a imóvel que é obrigação da concessionária pública. Irregularidade do parcelamento que não exime a concessionária da prestação de serviço público essencial, que é direito do cidadão. Precedentes desta Câmara e do TJSP. Dano moral. Inocorrência. Ausência de prova de dano à honra ou à imagem. Sentença reformada. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO (Apelação Cível 1000512-75.2022.8.26.0169; Relator (a): Ana Catarina Strauch; 37ª Câmara de Direito Público; j. em 19/09/2023).

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OBRIGAÇÃO DE FAZER. Fornecimento de energia elétrica a imóvel – Obrigação da concessionária pública, em se tratando de serviço essencial e de natureza continuada – Alegação de impossibilidade por falta de prova de propriedade do imóvel e de irregularidade do loteamento e no parcelamento do solo – Inadmissibilidade. Precedentes deste C. Tribunal de Justiça – Caso, ademais, em que o laudo pericial concluiu que o imóvel atende a todos os requisitos para a pretensão – Sentença de procedência da ação mantida. Apelação improvida (Apelação Cível 1003867-90.2022.8.26.0073; Relator (a): José Tarciso Beraldo; 37ª Câmara de Direito Privado; j. em 26/06/2023).

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APELAÇÃO E REMESSA NECESSÁRIA. Mandado de Segurança. Município de Guaratinguetá/SP. Loteamento irregular. Ligação de serviço de energia elétrica. Negativa da autoridade impetrada. Área que já conta com outros moradores usufruindo do serviço individualizado. Possibilidade de se conferir o mesmo direito à impetrante em atenção aos princípios da isonomia e impessoalidade, sob pena de obstar direito fundamental à moradia digna. Pretensão que, ademais, encontra amparo no metaprincípio da razoabilidade ou proporcionalidade. Precedentes. Direito líquido e certo configurado. Manutenção da concessão da ordem que se impõe. Recursos desprovido (Apelação / Remessa Necessária 1002909-22.2020.8.26.0220; Relator (a): Renato Delbianco; 2ª Câmara de Direito Público; j. em 30/07/2021).

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Ligação de medidor e fornecimento de água – Alegação de dificuldade de identificação do imóvel e de irregularidade do loteamento – O imóvel foi bem identificado pelo autor no protocolo juntado aos autos e a ré não comprovou a alegada confusão de endereços – Irregularidade do loteamento que não pode ser oposta para impedir fornecimento de serviço essencial cuja carência afeta diretamente as necessidades básicas do ser humano – Precedentes – Impedimentos técnicos trazidos apenas em apelação – Inovação recursal que não admite conhecimento e que, ainda que conhecidas, não procedem – Danos morais caracterizados – Recusa indevida da ré que privou o autor de direitos fundamentais – Situação que perdurou por anos – Valor arbitrado com razoabilidade e proporcionalidade – Recurso desprovido (Apelação Cível 1003591-32.2016.8.26.0441; Relator (a): Mário Daccache; 29ª Câmara de Direito Privado; j. em 19/09/2022).

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Ao que se evidencia, a ocupação irregular de uma área não pode ter o condão de alicerçar a recusa de concessionárias a fornecer serviços públicos no local, sob pena de absoluta afronta aos direitos fundamentais à vida, à igualdade, à segurança e à saúde, decorrentes do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, de seus moradores.

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Impende consignar ainda que o fornecimento desses serviços a imóveis localizados em regiões ocupadas de forma irregular não implica, necessariamente, na convalidação do loteamento clandestino. São questões absolutamente distintas, as quais não se comunicam, devendo ser tratadas de forma autônoma pelo Poder Público.

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Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da AASP .

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Natália Cordeiro Barbosa Dijigow

Minibio: Procuradora-Chefe da Procuradoria Consultiva e do Contencioso Administrativo do Município de Mauá/SP, advogada, consultora e escritora. Formada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e Especialista em Direito Tributário pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes LFG -Universidade Anhanguera Uniderp.

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