Sob o lema "Equidade Sempre, Paridade em Tudo", o Superior Tribunal de Justiça (STJ) encerrou, nesta quinta-feira (5), o I Simpósio Internacional pela Equidade Racial: Brasil, Estados Unidos e África do Sul. O encerramento do evento foi marcado pela divulgação de uma carta produzida pelos participantes da I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial, com uma conclamação a ações efetivas de combate à discriminação racial e à instalação de um grupo institucional permanente para a discussão do tema.
A carta reafirma a necessidade de enfrentamento das desigualdades étnico-raciais na Justiça brasileira e chama atenção para a importância de capacitar a magistratura para evitar julgamentos discriminatórios com a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ao final do simpósio, o diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), ministro Benedito Gonçalves, anunciou que a instituição vai colocar em prática as conclusões do simpósio, por meio de iniciativas na formação de juízes e juízas. "A equidade racial não é um ideal distante: é uma tarefa urgente e necessária, que depende de cada um de nós", afirmou.
Equidade racial deve ser pauta diária do Poder Judiciário
O primeiro painel da tarde, presidido pela desembargadora Maria da Purificação da Silva, do Tribunal de Justiça da Bahia, tratou das "Políticas judiciárias a partir do Pacto Nacional pela Equidade Racial: como construir práticas de promoção efetiva da equidade racial no Brasil?"
Para a magistrada, a questão da desigualdade racial deve ser uma pauta diária do Poder Judiciário, que tem papel fundamental na construção de um Brasil mais justo e inclusivo. "A justiça social é uma condição indispensável para a ##legitimidade## e eficácia do Sistema de Justiça, em uma sociedade autêntica e que representa seu povo", afirmou.
O juiz auxiliar do Supremo Tribunal Federal (STF) Fábio Francisco Esteves fez uma retrospectiva dos passos que levaram à edição, em 2022, do Pacto Nacional pela Equidade Racial do CNJ – como a Resolução 203/2015, que instituiu a reserva de vagas para negros na magistratura. Apesar de ressaltar o salto dado nos últimos anos em ações voltadas para a questão racial, o juiz destacou um grande problema na execução dessas políticas.
"Política de inclusão não se promove de graça, então, enquanto não houver orçamento para produzir equidade racial, vamos caminhar pedindo favor, dependendo da boa vontade dos gestores. Quando estamos pensando no orçamento público, que traz o planejamento dos órgãos públicos, ainda não há uma rubrica específica para a equidade racial", ponderou.
Passos lentos, mas sem retrocessos
Joacy Dias Furtado, juiz auxiliar da presidência do STJ, falou sobre a importância de a população negra integrar as ações sobre equidade. "Não faz sentido falar sobre a população negra se ela não faz parte da conversa, porque vamos fazer políticas sem efetividade", alertou. Na sua avaliação, embora o avanço ainda seja lento, não houve retrocesso no que já foi implementado.
Furtado mencionou algumas ações que podem ser adotadas pelo Judiciário nesse sentido, como o acompanhamento dos magistrados negros no decorrer da carreira; a aplicação da reserva de vagas a pessoas negras em todas as fases dos concursos, com publicação de listas específicas; a discussão regionalizada sobre o percentual mínimo da reserva de vagas, como piso e não teto; e a inclusão do critério racial nas promoções por merecimento por gênero nas carreiras.
Professor de direito constitucional na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Wallace Corbo observou que a discriminação é, muitas vezes, tratada como um fenômeno externo às instituições, uma "fatalidade". Para ele, contudo, o racismo é constitutivo das lógicas jurídicas que normalizam, por exemplo, colocar fora da tutela jurídica a morte de jovens negros.
O professor observou que esse racismo é também indireto e se mostra nas decisões que prejudicam os direitos dos negros, produzindo desvantagens específicas para esse grupo de pessoas. "A discriminação racial é institucional, opera na forma como as coisas funcionam, devendo a sua resposta também ser institucional. É preciso implementar medidas com regras específicas a serem seguidas por magistrados e servidores, quer eles queiram ou não", argumentou.
Ao encerrar o painel, o presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, destacou a necessidade de incluir magistrados negros nos tribunais brasileiros, e não apenas prestar homenagens aos heróis que lutaram por essa causa. "A mudança no Poder Judiciário só vai acontecer quando a nossa composição, nas escalas mais elevadas, refletir a diversidade do povo brasileiro", concluiu.
Lei não é igual para brancos e negros
De acordo com Lolita Buckner Inniss, professora e diretora da Faculdade de Direito da Universidade do Colorado em Boulder (EUA), a lei, na prática, funciona de forma diferente para um branco e um preto. "Quando falamos de racismo e antirracismo, muitas vezes tem a ver com o fato de que pessoas negras, por causa de sua negritude, constantemente recebem menos benefícios", ressaltou.
A professora comentou que no Século XXI ainda existe uma ausência de direitos e salientou a forma como o simpósio se propôs a remoldar um conjunto de normas que, segundo muitos diziam, já haviam sido mudadas. "Mas se nós continuarmos, e vamos continuar pressionando as normas da justiça, talvez a gente veja o que é ir em direção a uma igualdade sem cores", completou.
A ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edilene Lôbo abordou a hermenêutica da inclusão como forma de abolir o racismo e fazer a sociedade brasileira comparecer ao encontro marcado com a igualdade em todas as suas dimensões. Segundo ela, é necessário adotar o lema: equidade sempre e paridade em tudo.
"Nós precisamos passar das palavras à ação, precisamos deixar o discurso, enquanto Judiciário; especialmente, falar da hermenêutica da inclusão todos os dias, em cada uma de nossas decisões", destacou a ministra.
Enunciados tratam de compromissos da magistratura
No final do simpósio, os participantes da I Jornada da Justiça Federal pela Equidade Racial apresentaram alguns dos 47 enunciados aprovados no evento.
Um dos enunciados trata da necessidade de que a magistratura julgue com a perspectiva racial, garantindo medidas reparadoras em benefício das vítimas da discriminação. A jornada também aprovou enunciados sobre a observância, pelo Judiciário brasileiro, da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em questões raciais e sobre o dever de as plataformas digitais evitarem a discriminação algorítmica, sob pena de responsabilização.
Outra proposição aprovada diz respeito ao racismo ambiental, caracterizado pela distribuição desproporcional de riscos e danos ambientais em prejuízo de pessoas negras e pela não participação dessas pessoas nas políticas públicas. O enunciado propõe a adoção de demandas afirmativas pelo Estado, em consonância com os compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito internacional.