Explosão de habeas corpus reflete crise de múltiplas causas no Sistema de Justiça

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Superior Tribunal de Justiça (STJ) atingiu, há poucas semanas, uma marca simbólica e, ao mesmo tempo, inquietante: um milhão de habeas corpus recebidos desde a sua instalação, em 1989.

O avanço exponencial no uso desse instrumento jurídico impõe reflexões urgentes: há uma demanda crescente por proteção de direitos fundamentais e um amadurecimento no acesso à Justiça, ou o que se vê é o emprego indiscriminado do habeas corpus, sintoma de falhas que empurram para os tribunais superiores a correção de distorções estruturais? A resposta está longe de ser unânime. Magistrados, membros do Ministério Público (MP), advogados e defensores públicos observam o fenômeno a partir de ângulos diversos, mas uma coisa é certa: o debate convida à revisão crítica do Sistema de Justiça criminal.

Em jogo está não apenas a eficiência da máquina judiciária, mas a própria ideia de justiça em um país que ainda lida com profundas desigualdades. Entre a garantia dos direitos fundamentais e a necessidade de um Judiciário funcional, o habeas corpus continua a ser, mais do que nunca, um termômetro da democracia brasileira.

Uso do habeas corpus como substitutivo recursal

A avalanche de habeas corpus no STJ não é, conforme o desembargador e doutrinador Guilherme de Souza Nucci, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), um problema com causa única ou responsabilidade isolada. Para ele, trata-se de um reflexo complexo de uma engrenagem que funciona com desalinho. Nucci aponta fatores estruturais como o crescimento populacional, a desigualdade social e o avanço da criminalidade como os verdadeiros motores desse cenário, que acaba sobrecarregando o Sistema de Justiça.

No campo processual, ele observa que o habeas corpus vem sendo utilizado, de forma recorrente, como um atalho por advogados que buscam contornar a complexidade dos recursos ordinários. Essa prática, segundo o desembargador, agrava o fenômeno que hoje sobrecarrega o sistema judicial brasileiro. Ele alerta que o uso inadequado do habeas corpus como substituto de recursos previstos no ordenamento jurídico não apenas contribui para o congestionamento dos tribunais superiores, mas também enfraquece o valor constitucional do instituto, originalmente concebido para situações verdadeiramente excepcionais.

Nucci aponta que é comum a impetração de habeas corpus em paralelo à interposição de recursos cabíveis, como o agravo, o que gera distorções processuais. Na visão do magistrado, o enfrentamento desse quadro exige uma resposta institucional articulada entre todas as instâncias do Judiciário: "É fundamental que os tribunais estaduais e regionais federais assumam a postura firme de não conhecer do habeas corpus quando houver recurso próprio cabível e a decisão não for flagrantemente ilegal. Quando isso for feito de forma reiterada, os advogados compreenderão que não é mais possível contornar o sistema recursal com o uso indevido do ##HC##."

O pensamento é compartilhado pelo defensor público Marcos Paulo Dutra, coordenador de Defesa Criminal e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que vê um paradoxo na jurisprudência atual: embora o STJ tenha consolidado o entendimento de que o habeas corpus não pode substituir recursos ordinários ou especiais, muitos pedidos ainda são aceitos. "Há magistrados que concedem a ordem de ofício diante de decisões teratológicas, o que, embora compreensível em certos contextos, acaba incentivando a manutenção da prática e reforça a ideia de que o ##HC## pode sempre ser uma via alternativa", observa.

Dutra enfatiza que essa ambiguidade jurisprudencial contribui para a banalização do habeas corpus, desviando-o de sua finalidade essencial: a proteção contra abusos e ilegalidades evidentes. Em sua opinião, é necessário um compromisso coletivo com o rigor técnico e com o uso responsável dos instrumentos processuais, de modo a garantir a celeridade e a eficiência do sistema, e também a efetividade da tutela das liberdades individuais.

Falta de compromisso com a observância dos precedentes

Diante de um cenário marcado pela crescente fragmentação decisória, o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma do STJ, aponta que outra das principais causas do problema é o desrespeito aos precedentes dos tribunais superiores – os quais deveriam justamente garantir coesão e previsibilidade. A ausência de um compromisso sistemático com a jurisprudência consolidada transforma o sistema, nas palavras do ministro, em uma verdadeira "justiça lotérica".

"Um juiz decide de uma maneira em determinada vara; outro, em situação idêntica, adota entendimento completamente oposto", alerta Dantas. O resultado, ele afirma, é um cenário em que decisões judiciais perdem seu caráter de estabilidade, transformando-se em apostas cujo desfecho depende da roleta institucional de quem julga. Nesse sentido, a disciplina na observância dos precedentes, segundo o ministro, não é uma mera formalidade processual, mas um pilar da segurança jurídica.

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Se os julgadores respeitassem de forma mais rigorosa as diretrizes do STF e do STJ, os advogados não teriam razão para insistir em pedidos fadados à negativa sistemática. Isso reduziria significativamente o número de ações e promoveria um ambiente jurídico mais previsível e racional.

Ministro Ribeiro Dantas

O advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, autor do livro Habeas Corpus na Jurisprudência dos Tribunais Superiores, corrobora essa análise, avaliando que a resistência das instâncias ordinárias em aplicar os entendimentos pacificados nas cortes superiores é um dos motores mais potentes da crise atual: "Quando juízes de primeira e de segunda instância ignoram precedentes consolidados, obrigam os advogados a recorrer ao STJ."

Ele aponta como exemplo paradigmático o HC 598.886, de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, em que a Sexta Turma do STJ rechaçou uma condenação baseada em reconhecimento que não seguiu o procedimento legal previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Para o advogado, apesar da clareza do entendimento, muitos tribunais continuam a desprezar esse marco jurisprudencial, provocando uma enxurrada de novos habeas corpus sobre o mesmo tema.

Na dupla condição de julgador e doutrinador, Guilherme de Souza Nucci considera uma injustiça impor ao réu a necessidade de recorrer ao STJ para obter um benefício garantido pela jurisprudência – ainda que ele próprio não compartilhe do entendimento do tribunal superior.

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Pedidos reiterados e qualidade técnica da advocacia acendem alerta

No entanto, a falta de observância dos precedentes pelas instâncias ordinárias desencadeia outro problema igualmente grave. Caio Domingues chama atenção para o efeito cascata provocado pela instabilidade na aplicação desses entendimentos: a ausência de uniformidade nas decisões judiciais gera insegurança e imprevisibilidade, cenário em que muitos advogados se sentem compelidos a insistir em novos pedidos, mesmo após a rejeição da tese jurídica, na esperança de que o desfecho varie conforme o magistrado responsável pelo caso.

O advogado comenta que, em vez de respeitar a decisão colegiada que negou o habeas corpus, alguns profissionais optam por apresentar novas impetrações baseadas em fundamentos semelhantes ou idênticos – uma estratégia que, além de ineficaz, contribui para a sobrecarga do Sistema de Justiça. Para ele, o bom exercício da advocacia criminal exige mais do que combatividade: requer responsabilidade, técnica apurada e atuação estratégica.

"É dever do advogado conhecer as ferramentas jurídicas à sua disposição, mas também saber quando e como utilizá-las. O compromisso com a melhor defesa não pode anular o dever de contribuir para um sistema judicial funcional", destaca.

De acordo com Caio Domingues, esse cenário é consequência de um problema ainda mais profundo, frequentemente negligenciado: a falta de domínio técnico necessário para o uso adequado do habeas corpus. Na sua avaliação, a banalização desse instrumento constitucional decorre, em grande medida, da atuação equivocada de profissionais que, por desconhecimento ou até mesmo por excesso de zelo, acabam enfraquecendo a força e comprometendo a credibilidade do remédio jurídico mais emblemático na defesa da liberdade.

"Infelizmente, já vi colegas impetrarem habeas corpus diretamente no STJ contra decisões de primeira instância, o que é um erro grave. A impetração direta na instância superior só é cabível quando esgotadas todas as vias anteriores", afirma. O resultado, segundo ele, é o imediato indeferimento por ministros que, diante de pedidos manifestamente incabíveis, agem com rigor técnico.

Essa visão é compartilhada pelo defensor Marcos Paulo Dutra, que também se mostra preocupado com a perda de qualidade técnica em parte da advocacia criminal. Embora o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) represente um filtro inicial, ele considera que não tem sido suficiente para assegurar um padrão mínimo de ##preparo## profissional. "Isso se reflete diretamente no manuseio inadequado de habeas corpus, que muitas vezes são impetrados sem fundamentação jurídica adequada", explica.

Dutra avalia que a falta de domínio técnico sobre os recursos especiais e ordinários leva muitos advogados a recorrer indevidamente ao habeas corpus como alternativa. "Ele acaba sendo um convite para aquele operador do direito que precisaria se preparar mais, que não estudou tanto. Isso é algo realmente preocupante, porque a banalização do habeas corpus e o seu mau emprego, em muitos casos, acaba eclipsando várias outras hipóteses nas quais ele há de ser, sim, empregado", diz.

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MP pode colaborar para tornar o sistema mais eficiente, justo e racional

Caio César Domingues de Almeida ainda chama atenção para um ponto que, embora técnico, revela implicações profundas no dia a dia do sistema penal brasileiro: a atuação do Ministério Público na formulação da denúncia. De acordo com ele, há uma resistência injustificada por parte do MP em adequar suas acusações às balizas jurisprudenciais já consolidadas pelo STJ, como, por exemplo, no que diz respeito ao chamado tráfico privilegiado.

"Qual é o problema, entre tantos outros, de o Ministério Público oferecer, desde o início, uma denúncia por tráfico de drogas já reconhecendo a forma privilegiada, se, no caso, a pessoa é primária, tem bons antecedentes, ou a quantidade de drogas é pequena?", questiona o advogado. Ele calcula que essa postura permitiria uma resposta penal mais justa e proporcional, bem como viabilizaria a celebração de acordos de não persecução penal (ANPP) – instrumento que pode encerrar o caso de forma rápida e sem a necessidade de toda a marcha processual.

Na avaliação do advogado, o MP também tem o dever de aplicar de forma coerente e responsável os entendimentos firmados pelas cortes superiores, evitando a perpetuação de práticas que geram desgaste institucional e insegurança jurídica.

Nessa linha, o ministro Rogerio Schietti Cruz, que já foi membro do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), aponta que o órgão ministerial, por vezes, ainda sustenta acusações baseadas em provas que a jurisprudência dos tribunais superiores já reconheceu como inválidas, prática que inevitavelmente fomenta a impetração de habeas corpus – e, não raro, culmina na concessão da ordem para corrigir essas falhas. Para o ministro, essa realidade revela a necessidade urgente de um agir mais criterioso por parte do MP.

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O Ministério Público precisa reconhecer sua parcela de responsabilidade e selecionar melhor os casos que leva adiante, para que o Sistema de Justiça funcione de maneira mais coerente e sustentável.

Ministro Rogerio Schietti Cruz

O ministro ressalta a importância de se levar a fóruns de debate uma reflexão sobre o papel do MP na dinâmica de funcionamento do Sistema de Justiça criminal. Em eventos realizados com membros de Ministérios Públicos estaduais e no Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, Schietti conta que propôs um diálogo direto: de que maneira o MP pode colaborar para tornar o sistema mais justo e racional?

Habeas corpus segue sendo instrumento eficaz contra violações

Apesar das críticas ao uso excessivo do habeas corpus, ele continua a ser um meio relevante e efetivo para proteger a liberdade de indivíduos submetidos a ilegalidade ou abuso de poder. Em contextos de violação de direitos fundamentais, o ##HC## mantém seu papel de remédio jurídico rápido e acessível, como mostra a história registrada no vídeo abaixo.

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A série especial HC 1 milhão: mais ou menos justiça? debate o aumento expressivo do uso desse instrumento constitucional, trazendo diferentes pontos de vista sobre o fenômeno e o seu impacto nas atividades dos tribunais.

No próximo domingo: propostas para equilibrar a proteção de direitos fundamentais com a necessidade de racionalizar o uso do habeas corpus.

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