Segundo dia do Congresso Brasil-China aprofunda o debate sobre a proteção do meio ambiente e inteligência artificial nos tribunais

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O 1º Congresso STJ Brasil-China de Direito Meio Ambiente & Inteligência Artificial foi marcado pelo fortalecimento do intercâmbio entre instituições e universidades de ambos os países. O evento, promovido pelo Programa STJ Internacional nos dias 11 e 12 deste mês, enfocou dois temas atuais com relevância no direito internacional. Mais de 50 especialistas brasileiros e chineses discutiram aspectos variados na temática do meio ambiente e do uso de soluções de inteligência artificial.

Segundo o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Herman Benjamin, o principal resultado do evento é o aprofundamento no diálogo qualificado entre os países, discutindo temas atuais, relevantes e complexos no meio jurídico, com ganhos para o Judiciário e as instituições de ensino.

Na programação da manhã do segundo dia, o debate girou em torno do uso da inteligência artificial por tribunais e juízes. Ao abrir o painel, o corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, ressaltou a relevância e a atualidade do tema, especialmente em um país com profundas desigualdades sociais e um alto índice de judicialização. Segundo ele, com uma magistratura composta por cerca de 18 mil juízes, o sistema judiciário precisa ser reorganizado para lidar com a sobrecarga de processos.

"Nada melhor do que a tecnologia, por meio da inteligência artificial, para minimizar esse cenário e permitir que o Judiciário se concentre na solução das demandas que realmente lhe competem", declarou.

Em seguida, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva abordou os desafios enfrentados pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – do qual fez parte – na atualização da Resolução 332/2020, que estabelece diretrizes para o uso responsável da IA no Poder Judiciário.​​​​​​​​​

Participantes do congresso posam no Salão de Recepções do STJ com o presidente da corte, ministro Herman Benjamin.

O ministro explicou que o modelo de regulamentação em discussão busca viabilizar a contratação direta de ferramentas de IA, desde que sejam observados cuidados essenciais, como capacitação e treinamento dos usuários e a exigência de que as empresas fornecedoras dessas soluções adotem políticas rigorosas de proteção de dados e da propriedade intelectual. "Devemos implementar essa regulamentação para evitar riscos inaceitáveis na incorporação dessa tecnologia ao Judiciário", ponderou Cueva.

IA precisa estar alinhada aos valores fundamentais do direito

A professora Laura Schertel, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), abordou os riscos e desafios da IA no direito e no Sistema de Justiça. Segundo ela, o uso dessa tecnologia no Judiciário deve estar pautado na equidade, na correção e, acima de tudo, na confiança dos cidadãos diante das decisões judiciais. "Ao discutir a aplicação da inteligência artificial na Justiça, é fundamental considerar o sistema como um todo, as necessidades dos juízes, mas, principalmente, as demandas dos jurisdicionados – e não apenas as capacidades tecnológicas ou os benefícios econômicos", comentou.

Ela evidenciou que é essencial refletir sobre quais princípios norteiam a Justiça e como incorporá-los nos sistemas baseados em IA. "Precisamos compreender essa tecnologia para garantir que sua aplicação no Sistema de Justiça esteja alinhada aos valores fundamentais do direito", concluiu.

Regulamentar o uso da IA sem restringir o desenvolvimento comercial

Já o professor Zhou Wei apresentou um panorama sobre a legislação de IA na China e em outros países, destacando as práticas e lições aprendidas a partir das regulamentações existentes.  Durante sua exposição, o professor trouxe uma visão geral das práticas legislativas em países da União Europeia, nos Estados Unidos, no Japão, em Singapura e no Brasil, analisando as diferentes abordagens adotadas. No caso brasileiro, destacou como é positivo que a legislação sobre IA esteja alinhada à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), pois isso permite mais eficácia na aplicação da lei.

Ele também expressou preocupação sobre como regulamentar o uso da IA sem restringir o desenvolvimento comercial de novas plataformas e sistemas. Zhou Wei destacou o desafio de encontrar um equilíbrio entre a necessidade de um marco legal sólido e a preservação da inovação tecnológica, para que a regulamentação não se torne um obstáculo ao avanço da IA.

Panorama das ferramentas de inteligência artificial utilizadas no STJ

O secretário-geral da Presidência do STJ, Carl Smith, e a assessora-chefe da Assessoria de Cooperação Técnica e Eventos Especiais, Giovana Ventura, falaram sobre as ferramentas de IA utilizadas pelo STJ e como a tecnologia tem sido aplicada para otimizar a prestação jurisdicional.​​​​​​​​​

Os ministros Herman Benjamin e Benedito Gonçalves (ao centro) na mesa do evento.

Carl Smith relatou que, em 2018, o STJ criou a Assessoria de Inteligência Artificial, um setor especializado dedicado à definição, ao desenvolvimento e à implementação de soluções tecnológicas para aprimorar a atividade jurisdicional, e lançou o Athos, uma ferramenta inovadora para análise de similaridade entre documentos, que facilita a pesquisa e o monitoramento de peças processuais.

"Atualmente, contamos com uma IA generativa que extrai automaticamente os dados necessários dos documentos para a formação da capa do processo, otimizando o cadastro e a distribuição dos recursos. A inovação mais recente, lançada em 2025, é o STJ Logos, um sistema que atua como acelerador na análise e na elaboração de decisões, tornando o trâmite processual ainda mais ágil e eficaz", concluiu o secretário-geral da Presidência.

Em seguida, Giovana Ventura mostrou as interfaces e telas utilizadas pelos servidores do STJ, explicando como os sistemas implementados no tribunal operam na prática. Ela detalhou como as ferramentas de IA são integradas ao trabalho diário dos servidores, destacando sua função como auxílio e suporte nas tarefas judiciárias. "Todo o nosso esforço na disponibilização dessas ferramentas é garantir que o usuário, ao olhar para a tela, tenha o poder de utilizar a tecnologia como um apoio, sempre com o devido controle e com supervisão humana", afirmou.

Grande parte dos juízes reconhece a IA como ferramenta para suas atividades

O professor Juliano Maranhão, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), discutiu os avanços na pesquisa de IA aplicada ao direito, indicando como os desenvolvimentos acadêmicos podem ser direcionados para a aplicação prática nos tribunais.

Em relação ao uso de IA generativa na Justiça, Maranhão apontou que cerca de metade dos juízes reconhece a utilidade dessa tecnologia como uma ferramenta valiosa para suas atividades profissionais, incluindo o apoio à atividade judicial. No entanto, ele destacou que as cortes ainda questionam a precisão e as aplicações da IA em tarefas mais simples e burocráticas.

O professor da USP também ressaltou a existência de um movimento crescente em direção à delegação de tarefas para máquinas. "Por enquanto, acreditamos que nada pode substituir decisões humanas, mas, no futuro, precisaremos refletir sobre o que pode ser delegado às máquinas e o que deve ser reservado para os seres humanos. Aquilo que ficará para os humanos são as questões que exigem empatia ou envolvem raciocínios mais complexos relacionados a direito e moralidade política", arrematou.

Crimes ambientais e crimes cibernéticos marcam discussões nos painéis simultâneos

Durante a tarde, os especialistas se dividiram em dois grupos. O primeiro, dirigido pelo ministro Messod Azulay Neto e pelo professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), discutiu crimes ambientais.

Foram palestrantes desse painel o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a subprocuradora-geral da República Raquel Dodge e os professores Wang Zhiyuan, vice-diretor da Escola de Justiça Criminal da China (CUPL), e Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, professora e vice-diretora da Faculdade de Direito da USP.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca chamou atenção para os dados da crise ambiental global, em específico o aumento na temperatura e as consequências para o planeta caso medidas não sejam tomadas para reduzir as emissões.

"A consequência é que o mundo aumentará a temperatura em até 3,1 graus ao longo deste século. A poluição do ar provocou 8,1 milhões de mortes em 2021 apenas para termos o contexto mundial desse tema". Para o ministro, essa realidade reforça a importância da reparação do dano nos crimes ambientais.

O professor Wang Zhiyuan falou sobre o aspecto restaurativo posterior ao dano ambiental, conceito em evolução no país asiático. "Na China, nesse caminho, temos algumas práticas aceitas apesar da ausência de normas específicas. Observamos recentemente uma mudança de comportamento para chegarmos à cultura da reparação", completou.​​​​​​​​​

Um dos painéis, com participação do ministro Reynaldo Soares da Fonseca e da subprocuradora-geral Raquel Dodge, discutiu os crimes ambientais.

A professora Ana Elisa Bechara afirmou que não é mais possível negar as mudanças climáticas tendo em vista todos os fenômenos recentes observados, e o papel do direto é operacionalizar mudanças necessárias, seja no combate aos crimes ambientais, seja na reparação dos danos. "A legislação brasileira penal em matéria ambiental talvez seja a que mais se vale de complementação por normas administrativas, isso de modo positivo permite que o direito penal esteja atualizado e de acordo com as realidades regionais".

A subprocuradora-geral Raquel Dodge falou sobre o papel do Ministério Público no combate ao crime de desmatamento. O tamanho das florestas brasileiras, segundo ela, torna o Brasil um ator central na luta contra as mudanças do clima. "Proteger as florestas é mais do que uma questão ambiental, é uma questão climática de escala planetária e humanitária", assegurou, ao reforçar o protagonismo do Brasil na discussão dessas questões.

Novas formas de crimes online

O outro painel simultâneo discutiu crimes cibernéticos e foi dirigido pelo ministro Sebastião Reis Junior e pela professora Claudia Lima Marques, ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Os expositores foram a professora Ana Paula Motta Costa, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); os professores Gilberto Martins de Almeida, da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Fu Yuming, da Escola de Direito Criminal da Universidade de Ciência Política e Direito do Noroeste (NWUPL, Xian); e o delegado Otavio Margonari Russo, diretor de Crimes Cibernéticos da Polícia Federal.

A professora Ana Paula Motta Costa abordou a temática ressaltando que a vulnerabilidade específica da infância está relacionada ao uso excessivo de redes sociais e ao fato de o conceito de privacidade não ser devidamente assimilado pelas crianças, ainda em fase de desenvolvimento.

"No tema da organização da IA no Judiciário, o que a gente precisa talvez seja regular a função das big techs em relação à proteção da infância. Não é possível que esse ambiente seja um espaço de ninguém", disse a professora ao reforçar a importância de educação digital e regulação.

O professor Fu Yuming comentou sobre o uso de IA em sistemas autônomos, com uso específico em automóveis e os reflexos no direito penal em casos de acidentes. "O mecanismo mais eficaz para proteger usuários talvez seja transferir a responsabilidade para seguradoras, e talvez criar um fundo para compensações", disse ele.

Por sua vez, o professor Gilberto Martins de Almeida explanou sobre as iniciativas para aprimorar e preencher normas para combater crimes cibernéticos praticados com o uso de IA. Para ele, além da devida distinção dos tipos de crimes e edição de norma, é preciso ficar alerta a possíveis problemas futuros complexos que vão além do uso da IA. "Eu estou preocupado com a computação quântica, se ela quebrar todos os tipos de criptografia, como fica o sigilo bancário, postal, de dados pessoais?"

No final do painel, o delegado Otavio Margonari Russo apresentou a perspectiva da polícia brasileira no combate aos crimes cibernéticos, e destacou aspectos singulares dos diferentes tipos de crimes praticados. "O crime de ódio, por exemplo, mexe tanto com a gente, os textos são tão agressivos que temos até um tratamento especial para a saúde mental dos policiais que investigam esses crimes", relatou.

Encerramento pelo ministro Benedito Gonçalves: diálogo essencial e promissor

Durante o encerramento do congresso, o ministro Benedito Gonçalves, diretor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), disse que o evento foi um marco na cooperação institucional e acadêmica. "Presenciamos um diálogo essencial e promissor. O congresso foi um sucesso. Que seja o primeiro de muitos, que possamos continuar trabalhando juntos para fortalecer o direito como instrumento de transformação social e preservação do meio ambiente", afirmou.

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